terça-feira, 2 de novembro de 2010

a dúvida ou sem dúvida?

A dúvida
Foi num desses debates multivozes em que todos os participantes recomendam expressa ou implicitamente a demissão de Sócrates, não para que sejam adoptadas opções políticas radicalmente diferentes das suas, mas sim pela razão suprema de que têm para colocar no seu lugar um outro Sócrates que difere do actual no nome, na idade, nos supostos sábios que o apadrinham, na corte que o rodeia, nos boys que impacientes esperam o momento em que substituirão os boys que ocupam actualmente umas dezenas, talvez centenas, de cobiçados lugares. Foi, pois, num desses debates onde, como se sabe, é muito reservado o direito de admissão: indivíduo suspeito de se situar na área do PCP ou seus arredores não pode ali entrar. E sabe-se porquê: é que o projecto comunista foi uma ilusão que se desfez há mais de vinte anos, como se prova pela série «Comunismo – História de uma Ilusão», transmitida e repetida pela RTP2 e, pelo menos na passada segunda-feira, em dois horários num só dia. O que, segundo as mesmas fontes, não é ilusão nenhuma, é que a chamada Economia de Mercado, pseudónimo manso do neoliberalismo actual, regula por si própria todos os eventuais desequilíbrios, é verdadeiramente um descanso. Ou sê-lo-á quando alguns acabamentos completarem a sua instalação entre nós: maior flexibilização da legislação laboral para que os despedimentos sejam mais fáceis, extinção ou pelo menos redução a valores simbólicos dos exorbitantes «benefícios sociais» impostos pelos excessos imediatamente posteriores a Abril, coisas assim. É certo que Sócrates fez muitas coisas relevantes nestas matérias, mas é preciso que o novo Sócrates avance e faça ainda mais. E quando a obra estiver completada verificar-se-á que o neoliberalismo não é nenhuma ilusão, ao contrário do comunismo. Que, pelo contrário, será uma realidade muito concreta, muito assente num pragmatismo talvez sem princípios mas com excelentes fins. Ora, sendo assim, não faria sentido nenhum convidar para debates na televisão quem tem sobre o futuro a construir ideias obsoletas, quem insiste em contrariar e mesmo desmentir o que os senhores doutores pregam e explicam numa impressionante convergência de opiniões, quem não reconhece que a defesa dos direitos dos trabalhadores e da arraia-miúda em geral passou de moda e aliás é insustentável. Até porque a União Europeia não foi construída para isso e Bruxelas, vigilante, não deixa.

Imprecisão e coisas sérias

Foi precisamente num desses debates frequentados por gente cuidadosamente seleccionada que ouvi, mais uma vez, um participante decerto competentíssimo informar-nos de que o regime está em vias de se desagregar. Lamentavelmente, não anotei o nome do informador, sei apenas que não era dos mais assíduos nos estúdios das diversas estações, mas a minha falta não será grave porque um dia destes ele volta ou, se não exactamente ele, um seu semelhante que nos dirá o mesmo. E é fácil esta minha previsão: é que por mais de uma vez, e não apenas nos dias mais recentes, venho ouvindo pelas mesmas palavras ou por outras delas muito próximas a opinião de que este regime já não serve. Ora, tudo estaria bem se me fosse dado perceber de que regime é que os diversos opinantes estão a falar. Será do regime republicano de que se celebra agora os cem anos a que aliás será adequado subtrair quarenta e oito? Será do regime democrático actual, ainda incompleto em muitas vertentes, visivelmente mais democrático para uns que para outros? O caso é que a anunciada condenação do «regime» sem que se precise do que se está a falar gera uma dúvida pelo menos incómoda, se não inquietante. Se se trata de um projecto ainda que impreciso para acentuar a democraticidade do nosso quotidiano em todas as suas áreas, para promover finalmente uma justa redistribuição da muita ou pouca riqueza produzida e também dos esforços para essa produção, tudo bem. Mas se o projecto, caso exista para lá de uma previsão meramente retórica, tem um sentido diferente? Se visa a instalação do que por vezes se designa por «democracia musculada»? Dir-se-á talvez que essa é uma eventualidade improvável. Direi eu que as eventualidades improváveis também por vezes acabam por acontecer, e esta é uma que não me apetece nada. Por isso ouço na TV a quase profecia da «desagregação do regime» e fico perante ela, encalhado, a perguntar-me o que quer aquilo dizer. A desejar uma clarificação e a sentir que tenho direito a ela. Porque com coisas sérias não se brinca. Nem mesmo se brinca aos profetas.

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