Artigo de Octávio Augusto no Avante!
Texto de António Gervásio,
Um dos principais dirigentes do PCP envolvidos na direcção da luta
1962/2007
As oito horas de trabalho no campo
Uma conquista histórica do operariado agrícola do
Sul
Nota introdutória:
O presente texto da
autoria de António Gervásio foi publicado no nº 259 da revista “O Militante”,
em Julho de 2002.
António Gervásio, operário
agrícola, natural de Montemor-o-Novo, aderiu ao PCP aos 18 anos. Foi dirigente
do PCP, antes e depois do 25 de Abril.
Foi na qualidade de
funcionário e dirigente comunista, que interveio de forma directa na
organização das lutas de Abril-Maio de 1962.
Consultar:
António Gervásio
Lutas de massas em Abril e Maio de 1962 no sul do país
Cadernos da história do
PCP – nº 1
Editorial Avante! -
1996
-------
Na
história da luta revolucionária do operariado agrícola do Sul contra o
fascismo, pelo pão e pelo trabalho, pela liberdade e progresso social estão
registadas duas vitórias e realizações de um elevado significado político e
histórico: uma, sob o fascismo, a extraordinária conquista vitoriosa do horário
das 8 horas para o campo, em Maio de 1962; outra, na Revolução de Abril, o
audacioso avanço para a Reforma Agrária, em 1975, sob a bandeira de "a
terra a quem a trabalha!".
Uma e
outra não foram oferecidas pelo poder dominante. Uma e outra foram conquistadas
pela luta corajosa, combativa e organizada do proletariado agrícola do Sul. Uma
e outra tiveram no seu centro, como motor impulsionador, a intervenção
organizada e dirigente do PCP.
A conquista das 8 horas
representou uma extraordinária melhoria das condições de vida e de trabalho de
centenas de milhar de trabalhadores e suas famílias. A Reforma Agrária produziu
profundas transformações qualitativas nas terras do latifúndio. Pôs as terras a
produzir. Acabou com o desemprego. Abriu horizontes de uma nova vida e de uma
nova esperança às populações do Sul. A Reforma Agrária foi travada e destruída
pelos seus inimigos! Um crime que ficará para sempre ligado aos governos de
direita ou com política de direita.
Realidades e razões da luta pelas 8 horas
Já passaram 40 anos.
Abordar hoje a questão das 8 horas para a agricultura poderá parecer, sobretudo
às gerações mais novas, um assunto de menor importância. Mas não o é. Falar da
conquista das 8 horas pelo operariado agrícola do Sul é prestar homenagem a
essa luta e aos seus obreiros. É relembrar uma das lutas mais magníficas dos
assalariados agrícolas do Sul, uma vitória histórica arrancada ao poder
fascista e aos grandes proprietários da terra, pela primeira vez em Portugal,
por um poderoso movimento de massas, sob a influência e direcção do Partido,
que envolveu cerca de 200.000 trabalhadores agrícolas do Sul.
Quando vemos os
ideólogos do capital na guerra política e ideológica contra o PCP, passando
certidões de óbito, mentindo e deturpando, silenciando o papel determinante do
PCP na resistência antifascista e na luta dos nossos dias na defesa dos
interesses dos trabalhadores e do povo, contra a política de direita, por uma
alternativa de esquerda, é necessário falar a verdade, relembrar a história.
Relembrar que, até Maio
de 1962, os assalariados agrícolas do Sul (com pequenas diferenças no Ribatejo
e na Margem Esquerda do Guadiana) não conheceram outro horário de trabalho no
campo que não fosse o escravizante horário de sol a sol, ou seja: pegar ao
nascer do sol e despegar ao sol-posto. Fazer o caminho de casa para o trabalho
e vice-versa, a pé, uma, duas horas (e mais). Não havia transportes, raros eram
aqueles que possuíam uma bicicleta a pedal!
Os assalariados
agrícolas não tinham subsídio de desemprego, nem reforma, nem assistência
médica, nem segurança social. Tinham salários de miséria, passavam fome, eram
trabalhadores sem direitos! Em 1960 a 1962 o seu salário médio rondava os 25$00
a 30$00 para o homem e 13$00 a 17$00 para a mulher! O desemprego atormentava os
trabalhadores longos meses sem ganharem um tostão para o seu sustento e das
suas famílias.
Outra realidade que
importa relembrar: nas décadas de 40 a 60 havia nos campos do Sul mais de duas
centenas de milhar de assalariados agrícolas. Cada vila e aldeia constituíam
uma concentração de trabalhadores agrícolas, homens e mulheres, sem terra sua.
A única fonte de subsistência, sua e da família, era a venda da sua força de
trabalho, mão-de-obra sem direitos sujeita à exploração sem lei dos agrários.
A mais pequena luta era
violentamente reprimida. Muitos milhares de trabalhadores agrícolas foram
espancados, presos e alguns assassinados. Privado de direitos sindicais, o
proletariado agrícola foi um baluarte de resistência contra a ditadura, uma
classe combativa, com um elevado espírito de unidade e de organização. Através
dos anos e da luta desenvolveram a sua organização unitária, como as Comissões
de Unidade (comissões de tipo sindical, clandestinas). Organizaram as Praças de
Jorna (locais onde os trabalhadores se juntavam para combinar aumentos de salários
e outras reivindicações, com intervenção das Comissões de Unidade).
Desenvolveram uma forma
de organização muito importante: tornaram prática corrente, em muitas
localidades, fazer reuniões ou plenários de trabalhadores antes de iniciar uma
luta ou uma reivindicação. Por vezes essas reuniões ou plenários tinham 100,
150, 200 e mais participantes e várias delas com a participação de funcionários
do Partido. De um modo geral, essas reuniões eram feitas de noite para fugir à
vigilância policial. Mesmo nas condições da repressão fascista, era já uma
forma de organização avançada da discussão unitária e democrática dos problemas
dos trabalhadores.
A preparação da luta
A partir do começo dos
anos 40 a implantação da organização e influência do Partido tem um desenvolvimento
crescente nas vilas e aldeias do Sul, em particular no Alentejo. O PCP ganha
forte influência e força organizada, grande confiança e credibilidade no seio
dos trabalhadores agrícolas. O único partido que os trabalhadores sempre viram
junto de si, na defesa dos seus legítimos interesses, contra o fascismo e a
exploração dos agrários, no confronto com a repressão e nas cadeias, foi o PCP,
os seus militantes.
Nas décadas de 50 a 60
o Partido tinha organização e ligações na maioria das localidades mais
significativas do Sul, com maior peso nos três distritos do Alentejo. De um
modo geral não havia uma luta com maior significado que não tivesse a
intervenção ou a influência do PCP.
Em muitas dezenas de
localidades o Partido contava com fortes organizações, ligadas às massas:
Comité Locais, Comités de Zona, Células de Empresa, Comités Sub-Regionais e
Regionais, etc. O PCP gozava de grande confiança junto do proletariado
agrícola.
A vitória das 8 horas
tem atrás de si milhares de pequenas e grandes lutas (derrotas e vitórias) em
torno de melhores salários e outras reivindicações: nas ceifas, tiradas de
cortiça, debulhas, carvoarias, arrozais, mondas, apanha da azeitona,
"esgalhas" e outras, lutas expressas em concentrações,
abaixo-assinados, trabalho lento ("cera"), paralisações, greves e
outras formas. Lutas contra o flagelo do desemprego, pelo pão e trabalho, com
concentrações e manifestações junto das autoridades, caçadas às lebres e
perdizes nas coutadas, bolota, azeitonas, carne nos rebanhos: "buscar o
comer onde o houver".
Luta contra a repressão
fascista e pela libertação dos presos, contra a guerra colonial e pela paz,
pela liberdade e a democracia. Na história da luta do proletariado agrícola
encontramos, em muitas reivindicações, a associação da luta económica com a
luta política.
A partir de 1957-58
É a partir dos anos de
1957 e 1958 que a luta pelas 8 horas ganha um maior desenvolvimento com a
multiplicação de reuniões e plenários com dezenas e centenas de trabalhadores
por muitas localidades do Sul. Vilas e aldeias como Avis, Benavila, Alcórrego,
Montargil, Sousel, Campo Maior, Montemor-o-Novo, Escoural, São Cristão, Lavre,
Cabeção, Mora, Vendas Novas, Bencal, Montoito, Couço, Coruche, Alpiarça,
Grândola, Alcácer, Palma e Comporta, Alvalade, Ermidas, Aljustrel, Ervidel,
Baleizão, Pias, Vale de Vargo, Serpa, apenas para relembrar algumas, são vilas,
aldeias e outras localidades que tiveram papel decisivo na discussão, na
organização, no desenvolvimento e direcção da histórica luta das 8 horas.
Em 1957 foi elaborado
um caderno reivindicativo com três pontos, a reivindicar junto do Instituto
Nacional do Trabalho (INT) e dos agrários:
1-Trabalho garantido;
2- Salário mínimo de 30$00 para o homem e 20$00 para a mulher;
3- Horário das 8 horas de trabalho.
Com o desenvolvimento da discussão e da luta, a exigência das 8 horas – a reivindicação mais sentida – ganha grande prioridade em relação aos pontos 1 e 2 do caderno.
Multiplicaram-se as reuniões e plenários, a formação de Comissões de Unidade. Em 1960 foi formada uma Comissão Coordenadora da luta com membros de outras comissões dos três distritos do Alentejo, do Litoral Alentejano e do Ribatejo
(Couço/Coruche). As condições amadureciam para o arranque final da luta.
O porquê da escolha do mês de Maio/1962
Muitos camaradas tinham
dúvidas do êxito desta luta, incluindo responsáveis da Direcção do Partido, se
não seria uma utopia a terminar num fracasso. Havia a noção de que arrancar as
8 horas aos agrários e ao fascismo seria uma luta muito difícil e dura. Era um
grande desafio. Havia também da parte de muitos trabalhadores (mais nos
ganadeiros) a ideia de que as 8 horas não se adaptavam aos trabalhos do campo.
A data não foi uma
escolha arbitrária, foram ponderados vários factores e realidades. A luta tinha
atingido um elevado ponto de amadurecimento. Havia uma forte vontade de sair
para a rua. O mês de
Maio era falado, com a
sua força por ser o Dia do Trabalhador, Março, Abril, Maio e Junho são meses de
grande aperto das culturas agrícolas, um factor favorável para pressionar os
agrários. Por outro lado, nos primeiros meses de 1962 galopa o movimento de
massas contra a ditadura: cresce a luta operária nas empresas, a luta social
nos campos, nas escolas, nos serviços, nos quartéis. Surgem as situações do
Santa Maria, o assalto ao Quartel de Beja. Cresce o Movimento de Oposição
Democrática. Rebenta a luta libertadora nas colónias e a guerra colonial.
Aparece a Rádio Portugal Livre (Março/1962) com um papel destacado na
informação da opinião pública. Acelera-se o isolamento e a crise interna do
fascismo.
Portanto, o mês de
Maio/1962 era a data, era a altura certa para arrancar para a rua com as 8
horas. Antes as condições não estavam maduras, depois poderia perder-se a
oportunidade certa.
Nos começos de 1962, o
Partido publica um número de "O Camponês" e uma separata com milhares
de exemplares a distribuir pelo Alentejo e Ribatejo, fazendo um firme apelo
dirigido aos trabalhadores agrícolas do Sul para que:
No dia 1º de Maio de
1962 ninguém trabalhe mais que as 8 horas! Que ninguém trabalhe mais de sol a
sol! Que lá onde os capatazes se oponham sejam os trabalhadores a imporem as 8
horas!
E assim aconteceu em
muitas localidades e herdades no dia 1 e 2 de Maio de 1962!
O apelo de "O
Camponês" e das organizações do Partido tiveram uma forte adesão. Logo nos
primeiros dias do mês de Maio dezenas de milhares de trabalhadores conquistaram
as 8 horas. Foi no Litoral Alentejano, onde o movimento arrancou com maior
força (Grândola, Alcácer, Palma e outras), que mais de 30.000 trabalhadores
conquistam, no dia 1 e 2 de Maio, as 8 horas. O poderoso movimento estende-se,
nas primeiras semanas de Maio, aos três distritos do Alentejo, ao Ribatejo, por
vários concelhos da Estremadura e do Algarve, envolvendo cerca de 200.000
trabalhadores, homens e mulheres.
As 8 horas não foram
conquistadas logo nos primeiros dias de Maio. Os agrários e a ditadura
ofereceram muita resistência, fizeram despedimentos, prisões e espancamentos,
deixaram estragar culturas. Promoveram amplas reuniões com a participação dos
governadores civis, INT, PIDE e GNR, em Alcácer do Sal, Grândola, Estremoz,
Évora e outras, com o objectivo de esmagar a luta pelas 8 horas. Muitos
agrários resistiram semanas e meses mas o movimento de massas também resistiu, era
mais forte e venceu!
A luta pelas 8 horas
tomou a forma de levantamento, com as Comissões de Unidade e outros grandes
grupos de trabalhadores falando, de localidade em localidade e de rancho em
rancho, com os trabalhadores e com os ranchos de fora (beirões e algarvios) no
sentido de ou trabalhavam as 8 horas ou não poderiam continuar de sol a sol. Os
ranchos de fora, uns aderiram à luta e outros abalaram.
A luta prolongou-se
pelo Verão fora com greves, com a recusa de trabalhar sol a sol. As organizações
locais tomaram as mais diversas iniciativas na organização da luta, contactando
com os trabalhadores, divulgando propaganda e apelando à resistência. As
mulheres e os jovens tiveram uma intervenção activa na luta das 8 horas, muitos
deles foram espancados e presos. As localidades e ranchos onde havia maior
atraso na organização foram arrastados pela onda do movimento.
No final de 1962 o
horário das 8 horas estava praticamente implantado nos campos do Sul. Tinha
acabado para sempre o horário escravizante de sol a sol. O fascismo não
oficializou as 8 horas para o campo, os trabalhadores implantaram-nas! Passaram
a ser aceites como uma coisa normal.
Estamos a falar de uma
realidade de há 40-50 anos atrás. Hoje vivemos uma outra nova situação. Os
campos do Sul, particularmente no Alentejo, sofreram profundas alterações
económicas e sociais. Após a destruição da Reforma Agrária foram reconstituídos
os latifúndios. As suas terras estão incultas, povoadas de coutadas e cercas de
arame farpado, não havendo, praticamente, actividade produtiva. As terras não
produzem e não dão emprego. Os campos do Sul sofreram a maior desertificação
social da sua história. Ainda há alguns assalariados agrícolas, mas num quadro
completamente novo, sem expressão. Hoje deixou de existir esse proletariado
agrícola do Sul, concentrado, numeroso, organizado e combativo que existia nos
anos de 1940 a 1970!
A vitória foi possível.
A luta pela conquista das 8 horas no Sul não foi uma revolta espontânea. Não
foi uma decisão voluntarista ou arbitrária. As 8 horas constituíam uma profunda
aspiração dos trabalhadores agrícolas do Sul. Esta luta foi organizada e
dirigida pelo Partido desde o início até ao seu triunfo. Ela amadureceu e
desenvolveu-se até à sua vitória.
Não basta as 8 horas
serem uma reivindicação muito sentida. A experiência da luta das 8 horas ensina
que, sem uma forte organização unitária dos trabalhadores agrícolas, sem uma
longa experiência, combatividade e determinação, sem uma grande organização do
Partido, com confiança dos trabalhadores, ligada aos seus problemas, a luta
vitoriosa das 8 horas não teria sido possível em 1962!
Sem comentários:
Enviar um comentário