quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Afinal é escolástica

Por: Anabela Fino

Os dados oficiais, embora ficando sempre aquém da crua realidade, não deixam margem para dúvidas: o desemprego subiu a pique na zona euro, com especial incidência nos países alvo das ditas medidas de saneamento económico e de estabilização financeira. Portugal fechou o ano de 2011 com 13,6 por cento de desempregados, o terceiro valor mais elevado da Europa.

Sempre segundo as estatísticas, só no ano passado, ficaram desempregadas 1700 pessoas por mês, todos os meses. E a percentagem continuou a aumentar no que vai de 2012.

Consequência directa desta realidade, a que há que juntar os brutais aumentos decretados pelo Governo e os não menos pesados cortes no rendimento, o número de insolvências das famílias decretadas pelos tribunais atingiu um máximo histórico entre Janeiro e Setembro de 2011, ultrapassando já as das empresas: 3839 contra 3264. Qualquer coisa como 14 insolvências por dia!

A situação é tão grave que o representante permanente da troika em Portugal – informa o Diário Económico – contactou a DECO para saber a «capacidade de resposta» desta organização no apoio às famílias.

Ora é neste contexto que o principal partido do Governo, o PSD, anuncia estar a rever o seu programa com o alegado objectivo de reforçar o seu carácter «humanista». Tendo em conta as notícias vindas a público sobre o assunto, a «coisa» até parecia interessante, mas eis que Passos Coelho – o líder, ele próprio, do partido e do Governo – veio anteontem dizer que o programa eleitoral apresentado pelo PSD no ano passado e o programa do Governo «não têm uma dissintonia muito grande com aquilo que veio a ser o memorando de entendimento celebrado entre Portugal, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional». Coelho acha este facto «curioso» e não hesita em afirmar que «há algum grau de identificação importante» entre a opinião da troika e o que é a sua «convicção do que é preciso fazer».

O dirigente do PSD e primeiro-ministro, que falava a militantes, não se coibiu também de retirar a conclusão lógica daquela afirmação: «executar esse programa de entendimento não resulta assim de uma espécie de obrigação pesada que se cumpre apenas para se ter a noção de dever cumprido». E sublinhou, não fosse alguém estar distraído: «não fazemos a concretização daquele programa obrigados, como quem carrega uma cruz às costas. Nós cumprimos aquele programa porque acreditamos que, no essencial, o que ele prescreve é necessário fazer em Portugal para vencermos a crise em que estamos mergulhados».  

Admitindo que a minha perplexidade perante tais afirmações pudesse acometer outros portugueses, fui ao dicionário rever a definição de «humanismo», o tal que deverá presidir ao programa do PSD. Reza assim: «atitude que consiste em pôr o centro dos seus interesses no homem; do ponto de vista histórico, movimento que se produziu no Renascimento entre a gente culta, por reacção contra a escolástica, e por um regresso às letras, às artes...».

Não bate a bota com a perdigota. Mas os dicionários são muito úteis. Atente-se na referência à escolástica e siga-se a pista, que de pronto se descobre que o termo, em sentido pejorativo, «é a atitude intelectual caracterizada pelo verbalismo, pelas subtilezas puramente formais, pelo conformismo...». Está explicado o mistério. O humanismo é só para disfarçar.

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